O Núcleo do Demônio: o experimento que tirou a vida de dois físicos

Por Nícolas Oliveira

06/12/2024 - 18:003 min de leitura

O Núcleo do Demônio: o experimento que tirou a vida de dois físicos

Fonte: Laboratório Nacional Los Alamos

No ano de 1945, nos recônditos de uma sala do Laboratório de Los Álamos, um pedaço de plutônio 239, inerte à primeira vista, escondia o poder de um sol em miniatura. Ele não emitia luz ou calor visíveis, mas carregava a capacidade de destruir ou de transformar por completo o espaço ao seu redor. 

Conhecido como o “Núcleo do Demônio”, esse bloco de metal cinza foi responsável por dois trágicos acidentes que custaram a vida de físicos talentosos e sublinharam os perigos da manipulação de materiais nucleares. Mas o que havia de tão especial — e tão perigoso — neste objeto?

No início da década de 40, o mundo estava em meio a uma revolução científica que mudaria a história para sempre. Durante a Segunda Guerra Mundial, o famoso Projeto Manhattan reuniu cientistas de todo o mundo para desenvolver a bomba atômica, uma arma que explorava a fissão nuclear para liberar quantidades imensas de energia. Elementos como urânio-235 e plutônio-239 eram fundamentais para esses dispositivos.

Núcleo do Demônio, uma massa subcrítica de plutônio de 6,2 kg.
Núcleo do Demônio, uma massa subcrítica de plutônio de 6,2 kg.

Este último elemento, o protagonista desta história, é um isótopo altamente radioativo que pode sofrer fissão nuclear em cadeia, liberando energia ao dividir seus átomos em partes menores. O chamado estado crítico ocorre quando o material é compactado ou configurado de maneira a permitir que nêutrons emitidos pela fissão causem reações em cadeia descontroladas. 

“Esse princípio é o mesmo que alimenta bombas atômicas, mas, em um laboratório, mesmo pequenas quantidades de material nuclear podem ser fatais quando as reações não são controladas.”

O Núcleo do Demônio foi criado como parte do esforço de guerra, visando ser usado em uma terceira bomba atômica após as de Hiroshima e Nagasaki. No entanto, com o fim da segunda guerra, ele se tornou um objeto de estudo para entender melhor os limites da fisicalidade dos materiais nucleares.

Nuvens de poeira em formato de cogumelo resultado da explosão atômica em um teste militar,
Nuvens de poeira em formato de cogumelo resultado da explosão atômica em um teste militar. (Fonte: Getty Images)

Pesando cerca de 6,2 quilos, o núcleo era denso e aparentemente inofensivo, mas sua proximidade ao estado crítico significava que, sob certas condições, poderia desencadear reações em cadeia perigosas. 

Os físicos que trabalhavam com ele realizavam experimentos conhecidos como "brincadeiras com o rabo do dragão", tentando determinar quão perto poderiam chegar de um estado crítico sem o ultrapassar.

Contudo, essa não é uma história feliz. Na noite de 21 de agosto de 1945, o físico Harry Daghlian estava sozinho na sala do núcleo no Laboratório Nacional de Los Alamos, localizado no Novo México. Ele estava realizando um experimento para medir a massa crítica do núcleo, empilhando blocos de carbeto de tungstênio ao redor do plutônio para refletir nêutrons de volta ao núcleo, aumentando sua reatividade.

Em um momento fatídico, Daghlian deixou cair acidentalmente um dos blocos sobre diretamente o núcleo. Isso fez com que o material alcançasse um estado crítico temporário, desencadeando uma liberação súbita de radiação

Daghlian reagiu rapidamente, removendo o bloco, mas já era tarde demais. Ele recebeu uma dose letal de radiação equivalente a 5,0 Gy (5,0 grays, unidade de radiação absorvida. O índice de letalidade começa por volta de 2,0 Gy). 

Nas semanas seguintes, Daghlian sofreu os sintomas clássicos da exposição aguda à radiação: náuseas, queimaduras e falência de órgãos. Ele morreu 25 dias depois, com apenas 24 anos.

Encenação do incidente de 1946 com uma chave de fenda utilizada para separar os dois hemisférios.
Encenação do incidente de 1946 com uma chave de fenda utilizada para separar os dois hemisférios. (Fonte:  Laboratório Nacional Los Alamos)

Menos de um ano depois, em 21 de maio de 1946, o físico Louis Slotin também caiu vítima do Núcleo do Demônio. Slotin, um especialista em montagem de bombas nucleares, estava demonstrando um experimento de criticidade para outros colegas. Usando uma técnica altamente arriscada, ele manipulava hemisférios de berílio ao redor do núcleo, que funcionavam como refletores de nêutrons.

Para controlar a proximidade dos refletores, Slotin usava apenas uma chave de fenda, mantendo-os separados por uma pequena abertura. Durante o experimento, a chave escorregou, fechando a abertura e levando o núcleo a um estado supercrítico. Uma intensa rajada de radiação foi emitida em frações de segundo.

Slotin, percebendo o erro, reagiu rapidamente e separou os hemisférios, mas já havia absorvido uma dose de radiação fatal, estimada em 10 Gy. Ele sentiu um calor instantâneo, um sinal clássico de exposição extrema à radiação. Nos dias seguintes, ele desenvolveu os mesmos sintomas que Daghlian, incluindo náuseas, vômitos e queimaduras severas. Slotin morreu nove dias depois, aos 35 anos.

A radiação emitida em ambos os casos causou uma ionização massiva no corpo dos cientistas, destruindo moléculas, quebrando DNA e matando células de forma irreversível, tornando uma recuperação impossível.

Explosão da bomba Able, feita a partir do Núcleo do Demônio.
Explosão da bomba Able, feita a partir do Núcleo do Demônio. (Fonte: Domínio Público)

Após o segundo acidente, o núcleo foi desativado e eventualmente usado em um teste nuclear na Operação Crossroads, em 1946. Esses acidentes levaram a mudanças significativas nos protocolos de segurança para experimentos nucleares, incluindo a proibição de manipulações manuais de materiais radioativos em condições críticas.

O Núcleo do Demônio deixou um legado sombrio, mas também serviu como um alerta sobre os perigos da energia nuclear quando não manipulada com o devido respeito e cautela. Os infelizes acidentes de Daghlian e Slotin ajudaram a moldar práticas mais seguras na manipulação de materiais radioativos que evoluem até hoje.


Por Nícolas Oliveira

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